domingo, 21 de dezembro de 2014

Senzala


a palavra
escraviza

de tudo que batiza
ela se apodera

a coisa deixa de ser
para chamar-se

àquilo que era
é dado um disfarce

toda máscara
é algema

como livrar-se
a coisa do nome?

a maiúscula apequena
o que nomeia

a tônica intimida
a tentativa

o próprio som
como correia

a própria vida
menos viva

a palavra
cativa


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Encadeados


gostaria de que falasse comigo tudo
aquilo que guarda em seu baú trancado.
passe-me as chaves do cadeado:
eu lhe ajudarei a soprar
cada mínima palavra empoeirada.
todo segredo existe unicamente
pra ser revelado, mais nada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu tocarei com a ponta dos dedos
a sua verdade silenciada.

não, eu não acredito que as tenha
perdido na madrugada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu imagino que as leve
consigo pra todo lado.
cada segredo existe unicamente
pra ser revelado, mais nada.
passe-me as chaves do cadeado:
eu beberei na calada da noite
do seu mistério destilado.

passe-me as chaves.
por favor, passe-me as chaves,
que você sabe tanto quanto eu:
são elas que abrem
o meu baú guardado,
onde foram trancadas
as que abrem o seu.



A Ponte dos Cadeados, em Paris.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Epitáfio


estranho esse estranhamento com a morte,
visto que ela se anuncia desde o primeiro
segundo de vida.

morre o homem aos noventa e muitos anos
e vai tão cedo!, por que tão cedo?, tão
querido que era, tanta falta fará.

será isso?

que saudade ansiosa seria essa a já
se queixar da ausência diante
do cadáver? 

se não aos noventa e tantos anos muito bem
vividos, em que outra idade se poderia morrer
sem essa invariável sucessão de lamentos?

lamenta-se, afinal, o morto ou a morte?

a saudade é pretérita. é o choro da lembrança.
confissão de impotência do homem, que, por mais
avançada a ciência, jamais se deslocará no tempo
além de nas escassas memórias.

o corpo é finito. é acúmulo de células.
a mansidão da matéria, que se sabe
provisória e simplesmente aceita
a circunstância.

que ninguém se engane: o morto é a morte.
o sussurro fúnebre aos ouvidos. o sinal ostensivo
de que o fim é próximo, queira Deus o mais
distante possível.

todo homem é menino.



A Manoel de Barros.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Uno


você é a ilusão mais tangível
que criei desde sempre.
certamente o tocaria
se não o soubesse
mais uma ilusão.
e perdidamente
eu me apaixonaria,
porque apaixonar-se
é próprio de tudo aquilo
que se sonha com as mãos.
a lucidez levou-me o sonho
e devolveu-me os olhos.
não posso impedir a
sua vinda ou negar
o meu chamado:
tudo quase real.
o que posso é me
pôr à distância para
ver a fugacidade que há
na aparência dos encontros.

você não existe
e eu não existo:
somente o amor.


domingo, 8 de junho de 2014

Átomos



ei!

há quanto tempo
você gira nessa órbita?

você sabe o que circula?

o que é que você enxerga
em meio a essa poeira cósmica?

conhece seu eixo?

se eu fosse você, parava.
por obséquio.

é que a sua órbita
interfere na minha.

cada vez que gira
irresponsavelmente,
movimenta partículas
por toda parte.

e eu,
cá no meu centro,
apenas sofro.



Para Edmo Magalhães.

sábado, 24 de maio de 2014

Pixels


Onde, hoje,
a vida real é mais importante
que o seu registro em celulares?
Todos querem mesmo é anunciar
que foram aqui-e-ali
e fizeram isso-e-aquilo.
Ir e fazer tornaram-se méritos em si.
A vivência? Inteiramente secundária.


sábado, 10 de maio de 2014

Ano-luz


(talvez você não entenda,
eu mesma demorei
a compreender o fato)

desde o exato momento
em que me soube mãe,
tudo cresceu em mim:
o amor, o sabor, o olfato

meu filho ainda tão pequeno
e grande o bastante
pra me fazer gestante:
essa condição tão estranha
de criar na própria entranha
uma vida que não a minha
e maior que a minha
e maior que o mundo

(sim, é possível
que você não entenda
e não há problema,
isso não muda nada)

a cada vez
que me digo mãe,
tudo se clareia em mim:
o amor, a dor, a estrada

meu filho ainda tão pequeno
e grande o suficiente
pra me pôr consciente:
essa condição tão estranha
de ver além da montanha
um caminho que não o de agora
e maior que o de agora
e maior que o mundo

(não, ninguém entenderá,
é possível que julguem um desatino)

o menino
que habita meu ventre
é uma estrela

(sim, es-tre-la)

com trajetória celeste
desconhecida,
luz própria, calor,
grandeza

pequenina centelha
sem nome
que me veio trazer
a certeza:

também sou estrela,
somos todos estrelas
maiores que nós,
maiores que o mundo



Escrito para a querida amiga Débora Coghi.

sábado, 12 de abril de 2014

5 anos de Doce de Lira


Queridos leitores,

o blog completou 5 anos na data de ontem.
Muito obrigada por acompanharem minha produção literária
aqui, no facebook e/ou no livro doce de lira, poesia à mesa.

Um abraço imensamente feliz da Confeiteira!


sexta-feira, 7 de março de 2014

Rapunzel

In the Bleak Midwinter by Loreena McKennitt on Grooveshark
Inicie a música antes da leitura.



eu sou
essa mulher
no alto da torre.
que o escolheu e lhe
ofereceu as longas tranças
pra que subisse e a encontrasse.
caminhar distraído, você foi laçado.
sem saber o que o esperava. sem sequer
desconfiar do que lhe viria depois dos cabelos. 
não lhe dei escolha. você teve de subir e escorregar,
subir e escorregar. subir e escorregar tantas vezes quantos
fossem os seus medos. de altura, de tontura, de devaneio. hoje,
eu o vejo da torre à metade do caminho. ainda perdido, desajeitado,
quase aflito. as tranças retas, você insiste em sabê-las curvas. eu espero.
eu esperei a vida inteira. sei que, um dia, terei a cabeça leve e a nuca livre.
e desceremos da torre juntos, finalmente de mãos dadas. degrau por degrau.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Sombrio


eu sempre espero

e porque sempre espero
já esqueci o porquê da espera

as coisas são assim: perdem-se
quando não encontradas

entre o sonho e a quimera
há só duas polegadas

se o que espero vier um dia
será tarde muito tarde

onde pus a lamparina
que tanto ardia e não mais arde?


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Rarefeito


é que

a brisa vem de fora
e o sopro sai de dentro

a brisa se demora
e o sopro é um momento

ela tão despretensiosa
e ele com tanto intento

ela toda misteriosa
e ele parte do centro

brisa frescor da alma
sopro calor do corpo

o sopro a conter a brisa
e a brisa feita de sopro



Escrito após a peça teatral Estranho farol dos cacos,
de Felipe Moratori.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Na ribeira


sem lavar os olhos, eu farejo
coisas a quilômetros

você nem desconfia, mas
deixou vestígios no azul
do azulejo da pia antes mesmo
de abrir esta torneira de água
barrenta e fria

saiu de mãos sujas e elas cheiram
ainda mais à distância,
que piedade

o podre se agarrará às unhas
quanto maiores a ganância
e a maldade

deixe-me aqui:

ciente de que esta água
fria e barrenta a seguir
pelo ralo bolorento
me orienta a abrir os olhos
de remela

sem lavá-los, eu farejo
coisas a quilômetros

minha alma é lavada a barrela




quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Réveillons


adoraria dizer que algo mudou, mas
não, não posso. nada muda assim,
não assim de um dia pro outro.
dezembro virou janeiro
e isso jamais alterou os fatos.
ainda somos você e eu
os mesmos de antes da ceia,
talvez apenas um pouco mais fartos.